Vale tudo para crianças?
Uma reflexão sobre a espetacularização
da violência desde a infância
Laís Fontenelle*
O MMA (Mixed
Martial Arts) – Artes Marciais Mistas, na tradução para o português – tem
ganhado cada vez mais novos adeptos da prática. Pasmem! Segundo últimas
notícias em jornais internacionais e nas redes sociais crianças menores de 8
anos têm se enfrentado em ringues ou palcos octogonais pelo mundo, mais
especificamente EUA e Armênia, com sangue nos olhos e golpes para lá de
adultos- que demonstram uma espetacularização da violência desde a infância e
pode ser visto no vídeo (abaixo).
É fato que o boom do MMA, como um espetáculo midiático, que envolve
diferentes artes marciais, faz sucesso há tempos em nosso país- seu criador – e
mundo afora e que também não é de hoje que se observa uma adultização da
infância quando vemos cada vez mais crianças ocupando papéis antes reservados
ao universo adulto. Então vocês devem estar se perguntando o que tanto me
chocou nas notícias que li.
Talvez o que
mais tenha me chamado atenção, em tempos tão violentos – quando uma cultura de
paz se faz urgente – foi ver que crianças, desde a mais tenra idade, têm sido
treinadas ao ataque e encorajadas, por suas famílias, a ter um desempenho de
galos de briga ao participar de um espetáculo que cultua e propaga a violência.
E acho que não fui a única a questionar essa nova moda, pois o que andei lendo
foram relatos bastante indignados de profissionais da saúde e educação e até o
próprio presidente do UFC, Dana White, criticando a realização dessas lutas
infantis. Para quem não está tão por dentro vale mencionar que UFC (Ultimate
Fighting Championship) é hoje a maior organização de artes marciais mistas
do mundo, que contém os maiores lutadores do esporte e produz mega eventos ao
redor de todo o mundo. Mas, muito mais do que um evento, podemos
dizer hoje que o UFC é uma marca que vende; muito mais do que roupas, ídolos,
acessórios de luta ou organiza eventos- ela vende valores como competição,
derrota, luta, ataque, performance, ganhador X perdedor.
Vale destacar
que não quero dizer aqui de forma alguma, até como esposa de um Karateca e
filha de Judoca, que lutas de contato são maléficas para as crianças ou que a
prática de artes marciais é inadequada na infância porque, sem dúvida, tanto
essas lutas quanto as artes marciais podem ensinar valores bem importantes
como: Autocontrole, Foco, Dedicação, Comprometimento, Defesa e principalmente
Respeito. Porém, tudo tem seu tempo e sua indicação. No Karatê, por exemplo,
que significa mãos vazias, o que se busca é mais autoconhecimento do que
competição e crianças menores de oito anos não podem, em locais sérios,
exercitar a prática. Há até um ditado dentro desta modalidade que diz que “o
Karatê começa na faixa preta”, o que significa que apenas depois de muita
experiência se é capaz de começar a compreender o verdadeiro significado de uma
arte marcial. No Judô o oponente não é tido como um adversário que merece ser
nocauteado e sim como alguém que merece respeito na sua prática. Os golpes
podem até ser enxergados como um balé a dois. Existem muitas regras claras de
proteção à integridade física do seu oponente. O tatame é tido, inclusive, como
uma terra santa.
Já o que tem
acontecido nesses ringues é algo totalmente diferente e que passa longe do
respeito exercitado através de outras lutas. O que se vê é uma
espetacularização da violência onde crianças pequenas são convidadas a se digladiar
enquanto adultos voyeurs gozam divertindo-se e tomando cerveja. Tudo isso
à custa de comprometimentos físicos nos ligamentos, ossos e pescoços das
crianças sem contar com os danos emocionais e as marcas subjetivas que podem
ser acarretadas por essa prática abusiva . Não se pode nunca esquecer que
nossas crianças são seres em desenvolvimento psíquico, físico e emocional e que
aprendem através de modelos adultos. Precisamos então parar e pensar no que
estamos permitindo que seja feito com as crianças e seus corpos expostos. O das
meninas, cada vez mais erotizados e despidos, e dos meninos expostos nessas
lutas espetaculosas. Tanto as artes marciais quanto as lutas de contato
envolvem conceitos sérios que a criança ainda não tem formados dentro de si.
Essa prática esportiva, extremamente competitiva aos meus olhos, quando
praticada na infância não traz nada além da expressão de uma
agressividade gratuita. Porque acredito que as crianças que ali entram para
lutar não tem ainda a capacidade de entendimento total do que esse espetáculo
envolve. Assim como, tenho certeza que, as meninas que desfilam em passarelas
de mini miss também não têm a dimensão do que é essa experiência – e talvez
seja até por isso que o Estado Francês discutiu com a devida seriedade esses
concursos também.
Esse cenário
não pode se armar e se tornar realidade. Nossas crianças precisam exercitar
valores mais cooperativos do que competitivos e de ataque. Vivemos um momento
especial no mundo em que diferentes manifestações de violência têm acontecido e
sido cada vez mais recorrentes e ainda nos perguntamos o que tem acontecido.
Nossas crianças têm sido convidadas ao combate e a luta, desde pequenos, quando
o que mais se precisa hoje talvez seja de cooperação, solidariedade e troca
afetiva- valores que não se aprende nesse tipo de embate.
E nem adianta
vir com explicações, como a de um treinador desses pequenos lutadores, que
disse que ele promove somente diversão e exercícios físicos entre esses
meninos. O que se promove são nada mais do que cenas brutais de
aviltamento da infância. As crianças precisam de mais respeito e do
entendimento de que coragem significa agir com o coração e isso começa em nós
adultos. Temos o dever de questionar ou, pelo menos, estranhar espetáculos como
esse. Crianças precisam brincar como exercício de comportamentos adultos. Elas
não precisam de ringues ou palcos para construção de conceitos como
feminilidade, masculinidade, coragem e bravura. Para nossas crianças não
vale tudo. Deixo aqui minha indignação.
Reproduzido
de Revistapontocom
e Infância
de Clarice
13 nov 2013
* Laís Fontenelle é Psicóloga, mestre
em Psicologia Clínica pela PUC-Rio com dissertação intitulada “Moda Clubber e
Raver: uma tendência na cena contemporânea”. Atualmente coordena a área
de Educação e Pesquisa do Projeto Criança
e Consumo do Instituto Alana.
Atuou na área de Educação Infantil
durante nove anos no eixo Rio de Janeiro e São Paulo. Também realizou
atendimento terapêutico em crianças com problemas de aprendizagem e assinou a
coluna Consumindo Ideias da Folhinha do Jornal Folha de São Paulo em 2009. Especialista
no tema Criança, Consumo e Mídia é hoje uma ativista pelos direitos das
crianças viajando o país sensibilizando corações e mentes para o problema do
consumismo na infância.
Comentário de Filosomídia:
Muito bem, Lais
Fontenelle. Tanto a "lutar" pelos direitos das crianças à infância...
Se a gente não fica atento a esse tipo de agressão aos seus direitos daqui a
pouco - sob os olhos, bocas e ouvidos dos poderes públicos constituídos - esse
tipo de "show" vai pra grade de programação infantil domingueira das
redes de TV hegemônicas mirando o nicho de mercado de consumo. É assim que
essas empresas agem, sem compromisso nenhum com a ética e os direitos
humanos... Lamentável...
Leo Nogueira Paqonawta
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