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domingo, 18 de outubro de 2015

Dos direitos radicais das crianças


Dos direitos radicais das crianças

Ligia Moreiras Sena

Toda criança tem direito de explorar livremente o ambiente onde vive.

De interagir com o ambiente natural.

De experimentar novas sensações e afetos.

De admirar o mundo.

De ser estimulada a respeitar todas as formas de vida.

De se sentir parte delas.

De sentir cheiro de flor, de água, de riacho, de comida fresquinha, de casa limpa.

Toda criança merece expandir seus horizontes e seu olhar.

Conhecer outras formas de viver e outros hábitos de vida.

Toda criança precisa ser levada em consideração nas tomadas de decisões familiares.

Toda criança merece ser incluída ativamente nos programas da família, não como uma “bagagem” que se carrega secundariamente, mas como parte que influencia a escolha.

Toda criança merece e tem direito de interagir com outras crianças, principalmente com aquelas que vivem de maneira diferente delas próprias, uma vez que isso constrói o respeito e a equidade.

Toda criança merece receber uma educação livre de preconceitos e discriminações de qualquer tipo.

Merece saber que amor não escolhe sexo, cor, classe social, etnia, nacionalidade.

Toda criança merece passar menos tempo em frente à TV e mais tempo junto à natureza.

Toda criança tem direito de saber de onde vêm seus alimentos e de conhecer aqueles que realmente lhe são bons.

Tem direito de saber se aquilo que está sendo oferecido a ela é realmente saudável, é realmente benéfico, fará realmente bem, ou é apenas reflexo do despreparo de quem oferece.

Toda criança merece ter seus medos compreendidos e acolhidos, nunca ridicularizados, nunca menosprezados, nunca ignorados.

Toda criança precisa sentir-se parte do todo, influenciada por ele e o influenciando.

Precisa ser respeitada como ser integral e a ela ser oferecido o que de melhor houver diante das possibilidades de cada contexto.

Todo choro de criança precisa ser acolhido e compreendido, jamais ignorado, jamais minimizado.

Toda criança precisa ser protegida contra todas as formas de alienação. 

Ao mesmo tempo em que precisa e merece ser protegida contra todo tipo de violência, a fim de que aprenda que um mundo cordial é possível e que violência é retroalimentada.

Toda criança merece ser protegida contra riscos desnecessários ou situações que representem perigo, qualquer que seja ele.

Toda criança merece não ser medicada por qualquer bobagem. Merece ter sua saúde e integridade física respeitada. Merece viver longe de drogas ativamente oferecidas por seus cuidadores sem que exista real e indiscutível necessidade.

Precisa saber que sempre haverá quem a ajude, quem a proteja, quem lute por ela.

Acima de tudo, toda criança merece ser olhada como uma semente já germinada, porém sedenta daquilo que a fará grande, forte e viçosa, e nutrida com o mais puro amor e disponibilidade.

Nenhuma criança é ônus.

Nenhuma criança é empecilho.

Nenhuma criança é dispendiosa.

Se uma criança assim estiver sendo vista, o problema está em quem assim a vê.

Tudo isso parece demasiadamente óbvio. Mas infelizmente não é. Se assim fosse, não nos depararíamos repetidas vezes com situações que simplesmente ignoram o bem-estar da criança, ou o minimizam, ou o preterem em função do mundo adulto e suas pseudonecessidades.

É preciso lembrar repetidas vezes que crianças têm direitos fundamentais que precisam ser respeitados e que vão muito além dos enumerados na Declaração dos Direitos da Criança.

Direitos que passam por mais sensibilidade, por mais acolhimento, por mais afeto, mais entendimento, mais entrega e acesso, mais verdade, mais sinceridade, menos subterfúgios e desculpas as mais variadas.

Crianças não são extensões de seus pais.

Crianças não são propriedades deles.

Crianças não são receptáculos vazios onde inseriremos todo nosso despreparo.

São novos seres.

Que merecem um mundo novo.

Ou uma nova forma de viver neste velho mundo.

Uma forma que valorize o sentido básico da infância, sua essência mais profunda e indivisível, sua raiz primordial.

Uma forma que é, por seu mais profundo significado, radical: que diz respeito a raízes, a princípios, a essências.

Em um mundo de moderações e contemporizações, onde ser complacente com a violência é visto como ser "moderado", onde aceitar uma palmada, um xingamento, é visto como ser "tolerante" com diferentes formas de cuidado parental, em um mundo como esse, o que as crianças precisam é de um olhar mais radical sobre elas.

Um olhar radicalmente contra a violência.

Radicalmente contra a negligência.

Radicalmente contra o abandono.

Um olhar que busque a verdadeira raiz de ser criança.

Se é esse é o seu olhar, saiba que você não está só: a radical que mora em mim saúda a radical que mora em você.

"Radical" não é uma ofensa e "ser radical" não é um desvalor.

Embora, em um mundo de "moderados", as pessoas se esforcem tanto para que pareça ser...

E é sempre bom lembrar: quem não é radicalmente contra a violência à criança é, também, seu cúmplice.

Reproduzido de Cientista que virou mãe
06 mar2014

Sobre a autora

Bióloga, mestre em psicobiologia, doutora em farmacologia, área que deixei após me tornar mãe. Estimulada pela maternidade, mudei de área, de foco e de vida, e hoje faço um novo doutorado, agora em Saúde Coletiva. Sou pesquisadora da assistência ao parto no Brasil, da violência obstétrica e da medicalização da infância e do corpo feminino. Sou mãe da Clara e esse é o mais relevante dos meus títulos, pois foi ele quem me modificou verdadeiramente. Ela me inspira, todos os dias, a olhar a vida e os seres humanos por outro prisma, a lutar pelos direitos das mulheres e a conectar pessoas que buscam criar seus filhos de maneira afetuosa e não violenta.

Texto completo sobre a autora clicando aqui.



Leia também a "Declaração de Amor aos Direitos das Crianças", por Leo Nogueira Paqonawta, clicando aqui.

segunda-feira, 14 de outubro de 2013

Dia das Crianças e Movimento Infância Livre de Consumismo: "Somos o que defendemos"


Somos o que defendemos

Ligia Moreiras Sena*

Durante todo o ano, o pessoal do Movimento Infância Livre de Consumismo dedica seu tempo e seu esforço a algo que, na verdade, todos nós precisávamos estar fazendo, pelo menos nós que reconhecemos a infância como fase fundamental na formação de um ser humano íntegro e saudável: proteger as crianças dos efeitos nefastos do consumo, evitar que as crianças sejam vistas como peças de manobra no jogo injusto do consumismo.

São mulheres que poderiam dedicar o tempo que dedicam à causa às suas questões estritamente particulares, mas fizeram uma escolha que ultrapassa os limites de suas casas e que se baseia em uma coisa muito simples: no fato de que se uma criança pode e merece ser protegida, então todas podem e merecem. Não faz sentido algum protegermos nossos filhos dos ataques publicitários – que são, na verdade, uma das expressões de outros tipos de ataques, tão ou mais danosos – enquanto seus amiguinhos e amiguinhas continuam a ser massacrados todos os dias pelos apelos do consumo.

Muita gente acha que isso é uma grande bobagem. E não é raro ver pessoas que detêm espaços amplos de divulgação desperdiçarem a grande oportunidade de contribuírem para o bem coletivo e substitui-la pelo discurso senso-comum que, muito claramente, serve somente para atrair ainda mais gente, geralmente pessoas imersas no senso-comum, vivendo vidas senso-comum, numa sociedade senso-comum, moldada pelo capitalismo massacrante senso-comum.

Nós vivemos em um mundo capitalista. Embora eu não tenha iPhone, iPad, tablets e outras tecnologias, escrevo agora do meu computador, que foi comprado. Visto uma roupa que foi comprada. Meu café está agora em uma caneca que foi, também, comprada. Mas viver em um mundo capitalista não significa ser moldado e domado por ele. Não significa tornar seus os valores de consumo que delineiam as relações de consumo. Relações humanas não podem ser interpretadas como relações de consumo.

E é aí onde muitas pessoas se perdem: na confusão entre valores de consumo e valores humanos. Entre valores de consumo e valores individuais. E a prova cabal disso é que nos tornamos pessoas que acreditam que amor, integridade, senso de responsabilidade, reflexão crítica e tantas outras coisas fundamentais podem ser compradas. Porque, afinal, comprar é muito mais fácil que ensinar. É muito mais fácil que orientar. É muito mais fácil que dedicar tempo e atenção a mostrar o que é ou não adequado, coerente, responsável. Por isso, tantas e tantas pessoas compram seus filhos desde a mais tenra infância.

“Se você não for à escola, ou se atrasar, ou reclamar, vai pagar R$ 1,00”. O preço por não estar moldado a um sistema: R$ 1,00.

“Se você não jantar ou não almoçar, vai pagar R$ 0,75”. O preço pelo não entendimento da importância do alimento e de se alimentar bem: R$ 0,75.

“Se você ofender, xingar, brigar ou bater, vai pagar R$ 2,00”. O preço pela agressividade não orientada, pela não compreensão de que bater, xingar ou ofender dói no outro tanto quanto em si próprio: R$ 2,00.

 Além de mostrar a essas crianças que quase tudo na vida pode ser comprado (e que para o resto existe Mastercard), o que estamos fazendo quando agimos assim? Estamos dizendo: “eu não sei te ensinar, mas te comprar eu sei”. Estamos dizendo: “você é uma mercadoria e, como tal, posso te comprar”. Não há, nessa relação, noções de educação e orientação. Há uma relação mercantil onde um detém o poderio econômico e ou outro… é uma mercadoria.

Vamos pensar na relação estabelecida entre um presente e uma criança.

O que um presente produz na criança?

Satisfação. Alegria. Brilho no olhar.

Satisfação, alegria e brilho no olhar podem ser produzidos sem objetos, pela relação que se estabelece entre ela e as pessoas que a rodeiam? Podem. Devem.

Por que, então, transformá-los em capital?

Por que então comprar aquilo que pode ser produzido sem necessidade de colocar, sobre ele, o peso do capital?

Por que achar que datas específicas, criadas exclusivamente para fins capitalistas, pensadas para explorar pessoas, são momentos perfeitos para presentear nossos filhos?

Quem estimulou esse pensamento em você?

Que tipo de valores você está comprando e estimulando que outros comprem?

Por que sentir orgulho e satisfação por sua condição de explorado? E, pior, porque permitir que seus filhos também o sejam?

O Dia das Crianças não foi um dia criado para lembrar que toda e qualquer criança merece ser respeitada, cuidada, protegida – e não ser alvo da exploração capitalista. Não foi um dia criado para lembrar que toda criança tem direitos reconhecidos por uma Declaração Universal. Esse não seria o dia 12 de outubro, mas 20 de novembro, dia em que a Unicef oficializou a Declaração dos Direitos da Criança, em 1959.

O Dia da Criança é apenas uma data comercial, ganhou força no Brasil em 1955 como parte de uma campanha de marketing da Estrela, aquela empresa de brinquedos, que criou a “Semana do Bebê Robusto” (que nome…) com o único objetivo de impulsionar as vendas. E vendeu tanto que o país incorporou a data em seu calendário comemorativo.

Então você, que faz questão de incentivar o consumo nessa data e que se vê como dotado de opinião “própria”, está, na verdade, apenas reproduzindo aquilo que querem que você reproduza: que crianças podem ser exploradas comercialmente por um sistema que não pensa em você nem neles, e que não há mal nenhum nisso.

Muitas mães e pais estão combatendo os apelos desenfreados, antiéticos e cruéis do consumo que vê na infância um alvo perfeito. E enquanto isso, suas crianças estão crescendo. É provável que se tornem adultos antes que o apelo ao consumismo infantil seja vencido.

Se assim for, o que terá sido importante a essas crianças?

Algo que deveria ser muito simples de supor: os valores transmitidos ao longo de toda sua infância. Crianças que cresceram imersas em um outro modelo, um modelo que não valorizou o COMPRAR, mas o SER.  Que não envolve apenas combater o apelo ao consumismo e à publicidade infantil. Que envolve uma compreensão absolutamente diferente do que é a vida, que perpassa a crítica ao consumo exagerado mas, também, a qualidade da alimentação, o tipo de educação, as relações humanas, as relações familiares, o cuidado com o outro, entre todos os demais fatores que, em conjunto, podem ser chamados de vida.

Isso nos leva à frase daquele pacificador tão conhecido: “A felicidade está no caminho”. E ela não pode ser comprada de nenhuma forma. Mesmo que você esteja fazendo muita força para achar que sim.

Quando fazemos as crianças acreditarem que “um dia dedicado a elas” está fundamentalmente atrelado a um “poder de compra” e ao consumo, estamos estimulando a associação entre “ser alguém e ter algo”, o que se traduz em um vazio emocional e na perda da importância das pessoas por seus valores intrínsecos. Pessoas se tornam importantes porque algo é comprado para elas, e não pelo simples fato de que são pessoas. E isso, feito de maneira repetida ao longo de toda sua vida, faz com que a construção de sua identidade esteja associada a compra e a produtos. E é exatamente isso que a sociedade capitalista deseja.

É compreensível que muitas pessoas tenham resistência a problematizar a questão e que não enxerguem o problema do apelo ao consumo que o dia das crianças traz, principalmente quando consideramos a sua própria infância. É muito provável que essa pessoa também tenha crescido em um ambiente sem essa problematização. Mas isso não é um círculo impossível de ser quebrado, todos nós podemos interrompê-lo a qualquer momento e não permitir que nossos filhos sejam mais um elo dessa cadeia.

“A criança aprende que consumir é bom e prazeroso, principalmente quando há exemplo dos pais, a quem imita.

(…) A inserção da criança de dois a sete anos no mundo do consumismo é diretamente proporcional à qualidade e às configurações dos relacionamentos estabelecidos entre os pais e os filhos, de forma que há atitudes dos pais que podem estimular o consumo infantil e atitudes que podem desencorajá-lo. Nesse cenário, é absolutamente relevante considerar o sentimento da infância dos pais, ou seja,

quais percepções e concepções de criança eles têm, como tratam a infância e como estabelecem as relações com os filhos. O ambiente familiar como lugar de transmissão é geralmente o primeiro grupo social no qual a criança se insere, e, nesse sentido, as percepções dos pais sobre o que é ser criança são indissociáveis dos relacionamentos estabelecidos com os filhos.

 (Tiago Bastos de Moura, Flávio Torrecilas Viana e Viviane Dias Loyola, em “Uma análise de concepções sobre a criança e a inserção da infância no consumismo”)

 Que até o próximo 12 de outubro, no intervalo de um ano, nós possamos refletir sobre o que de fato é importante estimular em pessoas que criam outras pessoas e sobre qual nosso papel, de fato, na formação de uma sociedade que realmente respeite a infância. Que possamos mudar hábitos e reivindicar o respeito à infância, como forma de melhorar as relações humanas.

Crianças não precisam de bonecas que fazem xixi e cocô. Crianças precisam de gente que as defendam sempre, o ano inteiro.

Ainda que, ao fazer isso, sejam chamadas de patrulheiras, chatas e radicais. Afinal de contas, foram sempre os patrulheiros chatos e radicais os que conseguiram mudar o que precisava ser mudado. Não os que não veem problema em comprar e vender a infância.

Deixo aqui, nesse pós dia das crianças, meu agradecimento a duas turmas que estão constantemente na luta por seus e nossos filhos: os coletivos Infância Livre de Consumismo e Bater em Criança é Covardia.

Obrigada por tudo, amigos e amigas.

Um grande abraço

...

(*) Ligia é mãe da Clara, mora em Florianópolis, estuda a violência no parto e escreve o blog Cientista Que Virou Mãe.


13 out 2013