Somos o que defendemos
Ligia Moreiras Sena*
Durante todo
o ano, o pessoal do Movimento Infância Livre de Consumismo dedica seu tempo e
seu esforço a algo que, na verdade, todos nós precisávamos estar fazendo, pelo
menos nós que reconhecemos a infância como fase fundamental na formação de um
ser humano íntegro e saudável: proteger as crianças dos efeitos nefastos do
consumo, evitar que as crianças sejam vistas como peças de manobra no jogo
injusto do consumismo.
São mulheres
que poderiam dedicar o tempo que dedicam à causa às suas questões estritamente
particulares, mas fizeram uma escolha que ultrapassa os limites de suas casas e
que se baseia em uma coisa muito simples: no fato de que se uma criança pode e
merece ser protegida, então todas podem e merecem. Não faz sentido algum
protegermos nossos filhos dos ataques publicitários – que são, na verdade, uma
das expressões de outros tipos de ataques, tão ou mais danosos – enquanto seus
amiguinhos e amiguinhas continuam a ser massacrados todos os dias pelos apelos
do consumo.
Muita gente
acha que isso é uma grande bobagem. E não é raro ver pessoas que detêm espaços
amplos de divulgação desperdiçarem a grande oportunidade de contribuírem para o
bem coletivo e substitui-la pelo discurso senso-comum que, muito claramente,
serve somente para atrair ainda mais gente, geralmente pessoas imersas no
senso-comum, vivendo vidas senso-comum, numa sociedade senso-comum, moldada
pelo capitalismo massacrante senso-comum.
Nós vivemos
em um mundo capitalista. Embora eu não tenha iPhone, iPad, tablets e outras
tecnologias, escrevo agora do meu computador, que foi comprado. Visto uma roupa
que foi comprada. Meu café está agora em uma caneca que foi, também, comprada.
Mas viver em um mundo capitalista não significa ser moldado e domado por ele.
Não significa tornar seus os valores de consumo que delineiam as relações de
consumo. Relações humanas não podem ser interpretadas como relações de consumo.
E é aí onde
muitas pessoas se perdem: na confusão entre valores de consumo e valores
humanos. Entre valores de consumo e valores individuais. E a prova cabal disso
é que nos tornamos pessoas que acreditam que amor, integridade, senso de
responsabilidade, reflexão crítica e tantas outras coisas fundamentais podem
ser compradas. Porque, afinal, comprar é muito mais fácil que ensinar. É muito
mais fácil que orientar. É muito mais fácil que dedicar tempo e atenção a
mostrar o que é ou não adequado, coerente, responsável. Por isso, tantas e
tantas pessoas compram seus filhos desde a mais tenra infância.
“Se você não
for à escola, ou se atrasar, ou reclamar, vai pagar R$ 1,00”. O preço por não
estar moldado a um sistema: R$ 1,00.
“Se você não
jantar ou não almoçar, vai pagar R$ 0,75”. O preço pelo não entendimento da
importância do alimento e de se alimentar bem: R$ 0,75.
“Se você
ofender, xingar, brigar ou bater, vai pagar R$ 2,00”. O preço pela
agressividade não orientada, pela não compreensão de que bater, xingar ou
ofender dói no outro tanto quanto em si próprio: R$ 2,00.
Além de mostrar a essas crianças que quase
tudo na vida pode ser comprado (e que para o resto existe Mastercard), o que
estamos fazendo quando agimos assim? Estamos dizendo: “eu não sei te ensinar,
mas te comprar eu sei”. Estamos dizendo: “você é uma mercadoria e, como tal,
posso te comprar”. Não há, nessa relação, noções de educação e orientação. Há
uma relação mercantil onde um detém o poderio econômico e ou outro… é uma
mercadoria.
Vamos pensar
na relação estabelecida entre um presente e uma criança.
O que um
presente produz na criança?
Satisfação.
Alegria. Brilho no olhar.
Satisfação,
alegria e brilho no olhar podem ser produzidos sem objetos, pela relação que se
estabelece entre ela e as pessoas que a rodeiam? Podem. Devem.
Por que,
então, transformá-los em capital?
Por que então
comprar aquilo que pode ser produzido sem necessidade de colocar, sobre ele, o
peso do capital?
Por que achar
que datas específicas, criadas exclusivamente para fins capitalistas, pensadas
para explorar pessoas, são momentos perfeitos para presentear nossos filhos?
Quem
estimulou esse pensamento em você?
Que tipo de
valores você está comprando e estimulando que outros comprem?
Por que
sentir orgulho e satisfação por sua condição de explorado? E, pior, porque
permitir que seus filhos também o sejam?
O Dia das
Crianças não foi um dia criado para lembrar que toda e qualquer criança merece
ser respeitada, cuidada, protegida – e não ser alvo da exploração capitalista.
Não foi um dia criado para lembrar que toda criança tem direitos reconhecidos
por uma Declaração Universal. Esse não seria o dia 12 de outubro, mas 20 de
novembro, dia em que a Unicef oficializou a Declaração
dos Direitos da Criança, em 1959.
O Dia da
Criança é apenas uma data comercial, ganhou força no Brasil em 1955 como parte
de uma campanha de marketing da Estrela, aquela empresa de brinquedos, que
criou a “Semana do Bebê Robusto” (que nome…) com o único objetivo de
impulsionar as vendas. E vendeu tanto que o país incorporou a data em seu
calendário comemorativo.
Então você,
que faz questão de incentivar o consumo nessa data e que se vê como dotado de
opinião “própria”, está, na verdade, apenas reproduzindo aquilo que querem que
você reproduza: que crianças podem ser exploradas comercialmente por um sistema
que não pensa em você nem neles, e que não há mal nenhum nisso.
Muitas mães e
pais estão combatendo os apelos desenfreados, antiéticos e cruéis do consumo
que vê na infância um alvo perfeito. E enquanto isso, suas crianças estão
crescendo. É provável que se tornem adultos antes que o apelo ao consumismo
infantil seja vencido.
Se assim for,
o que terá sido importante a essas crianças?
Algo que
deveria ser muito simples de supor: os valores transmitidos ao longo de toda
sua infância. Crianças que cresceram imersas em um outro modelo, um modelo que
não valorizou o COMPRAR, mas o SER. Que não envolve apenas combater o
apelo ao consumismo e à publicidade infantil. Que envolve uma compreensão absolutamente
diferente do que é a vida, que perpassa a crítica ao consumo exagerado mas,
também, a qualidade da alimentação, o tipo de educação, as relações humanas, as
relações familiares, o cuidado com o outro, entre todos os demais fatores que,
em conjunto, podem ser chamados de vida.
Isso nos leva
à frase daquele pacificador tão conhecido: “A felicidade está no caminho”. E
ela não pode ser comprada de nenhuma forma. Mesmo que você esteja fazendo muita
força para achar que sim.
Quando
fazemos as crianças acreditarem que “um dia dedicado a elas” está
fundamentalmente atrelado a um “poder de compra” e ao consumo, estamos
estimulando a associação entre “ser alguém e ter algo”, o que se traduz em um
vazio emocional e na perda da importância das pessoas por seus valores
intrínsecos. Pessoas se tornam importantes porque algo é comprado para elas, e
não pelo simples fato de que são pessoas. E isso, feito de maneira repetida ao
longo de toda sua vida, faz com que a construção de sua identidade esteja
associada a compra e a produtos. E é exatamente isso que a sociedade
capitalista deseja.
É
compreensível que muitas pessoas tenham resistência a problematizar a questão e
que não enxerguem o problema do apelo ao consumo que o dia das crianças traz,
principalmente quando consideramos a sua própria infância. É muito provável que
essa pessoa também tenha crescido em um ambiente sem essa problematização. Mas
isso não é um círculo impossível de ser quebrado, todos nós podemos
interrompê-lo a qualquer momento e não permitir que nossos filhos sejam mais um
elo dessa cadeia.
“A criança
aprende que consumir é bom e prazeroso, principalmente quando há exemplo dos
pais, a quem imita.
(…) A
inserção da criança de dois a sete anos no mundo do consumismo é diretamente
proporcional à qualidade e às configurações dos relacionamentos estabelecidos
entre os pais e os filhos, de forma que há atitudes dos pais que podem
estimular o consumo infantil e atitudes que podem desencorajá-lo. Nesse
cenário, é absolutamente relevante considerar o sentimento da infância dos
pais, ou seja,
quais
percepções e concepções de criança eles têm, como tratam a infância e como
estabelecem as relações com os filhos. O ambiente familiar como lugar de
transmissão é geralmente o primeiro grupo social no qual a criança se insere,
e, nesse sentido, as percepções dos pais sobre o que é ser criança são
indissociáveis dos relacionamentos estabelecidos com os filhos.
(Tiago
Bastos de Moura, Flávio Torrecilas Viana e Viviane Dias Loyola, em “Uma análise de
concepções sobre a criança e a inserção da infância no consumismo”)
Que até
o próximo 12 de outubro, no intervalo de um ano, nós possamos refletir sobre o
que de fato é importante estimular em pessoas que criam outras pessoas e sobre
qual nosso papel, de fato, na formação de uma sociedade que realmente respeite
a infância. Que possamos mudar hábitos e reivindicar o respeito à infância,
como forma de melhorar as relações humanas.
Crianças não
precisam de bonecas que fazem xixi e cocô. Crianças precisam de gente que as
defendam sempre, o ano inteiro.
Ainda que, ao
fazer isso, sejam chamadas de patrulheiras, chatas e radicais. Afinal de
contas, foram sempre os patrulheiros chatos e radicais os que conseguiram mudar
o que precisava ser mudado. Não os que não veem problema em comprar e vender a
infância.
Deixo aqui,
nesse pós dia das crianças, meu agradecimento a duas turmas que estão
constantemente na luta por seus e nossos filhos: os coletivos Infância
Livre de Consumismo e Bater em Criança é Covardia.
Obrigada por
tudo, amigos e amigas.
Um grande
abraço
...
(*) Ligia
é mãe da Clara, mora em Florianópolis, estuda a violência no parto e escreve o
blog Cientista Que Virou Mãe.
Reproduzido
de Infância
Livre de Consumismo
13 out 2013
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