A
publicidade afasta-se das crianças. Que ótimo
Eugênio
Bucci *
07/02/2013
A publicidade brasileira
acaba de tomar uma decisão histórica. Ela vai tratar com mais respeito as
crianças. Vai ficar mais longe delas. A notícia é muito boa tanto para a
própria publicidade, que com isso ganha mais respeitabilidade, como,
principalmente, para a infância. Em doses exageradas, inescrupulosas, abusivas,
a propaganda faz mal para o público infantil. Deve ser servida com moderação.
O Conselho Nacional de Autorregulamentação Publicitária (Conar), entidade do próprio mercado
publicitário, cujos códigos não têm força de lei, mas são de adesão voluntária
e criteriosamente cumpridos, distribuiu agora, no início de fevereiro, uma nota
oficial anunciando novas regras - com novas restrições - para os comerciais
destinados às crianças. Entre outras novidades, o merchandising não será mais
admitido. Não para o público infantil.
Já era tempo. O
merchandising é um dos artifícios mais capciosos da indústria da propaganda.
Não tem o formato do anúncio tradicional, aquele que é veiculado nos espaços
comerciais claramente delimitados, como os intervalos da televisão, por
exemplo, e assim, disfarçado de não anúncio, tenta ser mais convincente. O
merchandising vai ao ar dentro do programa principal, como se fosse parte da
história. É bastante usado nas novelas. O leitor há de lembrar. Sem mais nem
menos, sem a menor congruência narrativa, a atriz fala para a outra que vai ao
banco "tal" e que o banco "tal" é uma beleza, com um
gerente, menina, que é uma simpatia só.
Marcas de esmalte, de
xampu, de macarrão, de carro, de celular invadem a trama e lá permanecem,
roubando a cena. A peso de ouro, por certo. O merchandising custa caro. É uma
operação de mercado com preços tabelados, preços altos, mas seu segredo é se
disfarçar, é passar seu apelo de consumo como se não fosse publicidade paga.
Que isso seja empregado
para aliciar consumidores adultos desavisados, vá lá, apesar da deselegância
constitutiva da coisa toda. Agora, voltar essa máquina contra olhos infantis
chega a ser covardia. A própria nota do Conar reconhece "a necessidade de
ampliar-se a proteção a públicos vulneráveis, que podem enfrentar maior
dificuldade para identificar manifestações publicitárias em conteúdos
editoriais". Atenção: o Conar admite, com todas as letras, que os públicos
infantis são "vulneráveis" e precisam de proteção. Que bom que o
próprio mercado publicitário - representado pelo Conar - dê mais esse passo.
Histórico.
A notícia é boa também
por duas outras razões.
A primeira é que os
vetos ao merchandising e outras práticas - como o emprego de "crianças e
adolescentes como modelos para vocalizar apelo direto, recomendação ou sugestão
de uso ou consumo" - não chegam à publicidade brasileira por meio de uma
medida autoritária. Ao contrário, as novas normas de proteção da infância brotam
do amadurecimento natural da mentalidade dos próprios agentes de mercado. Desde
1978 o Conar vem-se firmando como um dos casos mais bem-sucedidos de
autorregulação do mundo. Suas decisões nunca são contestadas. Embora não seja
um órgão estatal, tem legitimidade e representatividade para retirar campanhas
do ar, como já fez muitas vezes. Não é exagero dizer que o Conar é um fator
civilizatório na publicidade brasileira.
A segunda razão para
comemorar as novas regras é que elas ajudam a esclarecer que a liberdade de
anunciar produtos não é exatamente igual à liberdade de expressão do
pensamento. As duas têm status distinto na democracia. A liberdade de
manifestação, de externar opiniões, assim como a liberdade de imprensa, compõe
um direito fundamental inviolável. Um cidadão tem o direito pleno de, digamos,
escrever um artigo em jornal defendendo a legalização da maconha e de sugerir
um projeto de lei para legalizá-la. Com a publicidade é diferente. Uma agência
de publicidade não tem o direito de fazer uma campanha enaltecendo o consumo da
maconha do tipo A ou do tipo B. Não porque os publicitários, que também são
cidadãos, não tenham liberdade de se manifestar - isso todos temos. Essa
agência não pode fazer anúncio de maconha de nenhum tipo porque a maconha não
pode ser legalmente comercializada - e a comunicação publicitária está
subordinada às leis que regulam o mercado.
A publicidade comercial
é uma extensão do comércio devidamente legal. Assim, só se podem anunciar as
mercadorias e os serviços cuja comercialização não conflite com a legislação
vigente. Portanto, a liberdade de anunciar não se enquadra no rol das
liberdades fundamentais de informar e de ser informado. A publicidade veicula
ideias e conceitos, ou algo próximo a isso, mas não realiza o direito de expressão
do pensamento. Ela é uma atividade acessória do comércio, subordinando-se,
logicamente, às leis do comércio.
Para sorte do País, a
postura do Conar nesse episódio não se deixou confundir com o fanatismo dos
fundamentalistas, segundo os quais qualquer senão a um comercial de
refrigerante traz em si a mesma violência dos atos que censuram a imprensa.
Ora, são matérias inteiramente diversas. Uma não tem nada que ver com a outra.
O Conar não censura nada nem coisa nenhuma, apenas zela pela credibilidade do
seu ramo de atuação. Anunciar quinquilharias para crianças de 5, 6 anos de
idade por meio de subterfúgios e técnicas de dissimulação, por favor, isso,
sim, pode ser visto como uma violência inominável. Isso, sim, conspira contra a
credibilidade do mercado anunciante, em seu conjunto, e corrói a reputação de
todo o setor.
Quanto ao mais, o uso de
merchandising e de anúncios testemunhais para seduzir o público infantil - que
é, sim, vulnerável - já não se admitem em diversas democracias. O Brasil também
não precisa mais desse primitivismo. E vamos em frente, porque há mais a fazer.
* Eugênio Bucci é
jornalista e professor da ECA-USP e da ESPM.
Reproduzido
de clipping FNDC
07
fev 2013
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