"Escola de segurança máxima?
Para educador, a tragédia de Realengo pode reforçar estilo bunker que já entrincheira a sociedade
Um velho apresentador de TV costumava dizer que não tinha vindo para explicar, e sim para confundir. Na quinta-feira, ainda na quentura dos acontecimentos em Realengo, o professor Julio Groppa Aquino, da Faculdade de Educação da USP, ecoava metade daquele bordão. Ele não queria explicar o atirador que matou pelo menos 12 crianças em uma escola no subúrbio do Rio e depois se suicidou. Desconfiava que explicações viriam às pencas, inevitáveis, nauseantes. E nenhuma delas nos convenceria. Na sexta pela manhã, ao responder às perguntas do Aliás, ele mantinha a vontade de não explicar e, dando passagem à outra metade do bordão, adicionava ao tema grossas pitadas de confusão (e provocação), para daí extrair reflexões e nos fazer pensar além.
Psicólogo de formação, pesquisador da violência e da indisciplina no ambiente escolar e um dos críticos mais contundentes dos rumos educacionais do País, Aquino se debruçou sobre o que vem agora, depois da tragédia e do luto. Ele acha, por exemplo, que o estilo bunkerista das escolas, reproduzido das casas, dos condomínios e centros comerciais, será desgraçadamente reforçado. "Estaremos ensinando às crianças e jovens que só é possível conviver com seus concidadãos se houver um policial ao lado", lamenta. Na entrevista a seguir, Aquino também fala da sociedade que se nutre de violência e do papel dos professores na identificação de tendências violentas nos alunos: "Sala de aula não é consultório médico, e o alunado não é um corpo doente".
(...) Você falou em bunker. As escolas se parecem cada vez mais com eles, não é? Grades, portões, cadeados, vigias, câmeras... Depois do que aconteceu no Rio, como evitar que esse estilo bunker se acentue nos colégios? Será o fim do ideal de integrar as famílias na vida escolar dos filhos, tornar os pais mais participativos, etc.?
O estilo bunker apenas será reforçado, já que se trata de uma realidade muito bem instalada entre nós. Por exemplo, o bunkerismo escolar da classe média (e também das residências, dos centros comerciais, das instituições privadas como um todo) é contemporâneo à instalação generalizada das películas nos vidros dos automóveis. Trata-se de uma mostra de como a ideia de segurança já está completamente enraizada no imaginário social como um serviço indispensável - vital, para ser mais preciso - a uma parcela crescente da população. O problema é que quanto mais nos isolamos do contato com as outras parcelas da população (mais numerosas, por sinal) maiores são os riscos de confronto nesse encontro, a rigor, inevitável. Ora, as escolas públicas são exatamente esse ponto de contato entre diferentes parcelas da população. E isso nada tem a ver com a maior participação das famílias na vida escolar, no sentido de pacificar esse encontro. Família e escola, a meu ver e diferentemente dos clichês habituais empregados na discussão, são instâncias sociais paralelas e incidentais, e assim devem permanecer.
Abrir fogo contra inocentes dentro de uma escola tem algum significado especial? Por que na escola e não no supermercado, na academia de ginástica, na feira, no metrô?
Se for correta a hipótese da espetacularização da violência e também a da escola como figura institucional emblemática da contemporaneidade democrática, entende-se que as unidades escolares passem a ser alvos privilegiados de ataque, quando o que está em questão é o rompimento do pacto social. O curioso é que isso costuma acontecer nos ditos países desenvolvidos, e não em países periféricos. Já aconteceu na Finlândia, no Canadá, na China e, sobretudo, nos Estados Unidos. Seria um indício do ingresso do Brasil na rota do dito desenvolvimento socioeconômico?
(...) Cabe aos professores identificar tendências violentas nos alunos?
Imaginar que professores deveriam fazer diagnóstico psicológico/psiquiátrico é uma aberração. Sala de aula não é consultório médico, e o alunado não é um corpo doente, portador de anomalias. No entanto, os professores demandam diagnósticos desse tipo com regularidade, o que não impede que tenhamos a educação miserável que temos. Ou seja, a resposta propriamente pedagógica para isso é nula.
Que relação as crianças sobreviventes terão com a instituição escola depois de sofrer um trauma desse tamanho lá dentro?
Prospecções dessa natureza me parecem sempre inócuas e, por isso, fadadas ao fracasso. Mais ainda, no fito de antever efeitos, elas podem causá-los ou intensificá-los. Há, por exemplo, um sensacionalismo injustificável da mídia na cobertura do evento ao entrevistar os jovens envolvidos de uma maneira que beira a irresponsabilidade, convertendo todos, eles e nós, em reféns da espetacularização. O momento exige sobriedade e certo distanciamento, à moda dos antigos, de modo que seja possível decantar as informações, e não ser assediado por elas. Se quisermos honrar os mortos de fato, precisaremos mais do que alguns minutos de silêncio. Precisaremos nos aquietar. Outra questão: nem sempre as pessoas que sobrevivem a determinado acontecimento-limite desenvolvem esse ou aquele tipo de trauma e quetais. Não esqueçamos que as crianças são resistentes. Essas, em particular, tiveram de se defrontar com a crueza máxima da vida ainda quando jovens, mas sobreviverão. Já são fortes.
(...) Há explicação para o que aconteceu?
A meu ver, o melhor analista da questão da violência da/na escola não é um teórico, mas o cineasta Gus Van Sant, responsável pela obra mais impactante já realizada sobre o assunto: Elephant. Trata-se de uma retomada ficcional do massacre de Columbine, a partir do ponto de vista dos alunos envolvidos. Uma obra sem precedentes, indubitavelmente. O título do filme refere-se a uma parábola budista segundo a qual um grupo de cegos tenta descrever um elefante a partir das diferentes partes de seu corpo. Daí que ninguém logra ter uma visão do animal em sua totalidade, restando a cada um uma apreensão parcial, embora se imagine generalizante. Com isso, quero dizer que, a despeito de toda a tagarelice explicativa que virá à tona, as razões do que se passou em Realengo permanecerão incógnitas. Aos que creem no sobrenatural, cabe rezar pelos que se foram. Aos demais, resta-nos apenas um nó na garganta, um nó que não desata."
Christian Carvalho Cruz . Aliás/Estadão Online
09 abr 2011
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