Kidzania, cidade nada ideal para
crianças
Lais Fontenelle Pereira
Chega ao Brasil parque de diversões
global que, em nome de “aprendizagem”, sugere limitar vida à lógica das
empresas e marcas corporativas
“Deve ter alamedas verdes
A cidade dos meus amores
E, quem dera, os moradores
E o prefeito e os varredores
E os pintores e os vendedores
As senhoras e os senhores
E os guardas e os inspetores
Fossem somente crianças”
“A cidade ideal”, de Chico Buarque
Um
empreendimento global para crianças entre 4 e 14 anos invadiu o subsolo do
Shopping Eldorado, em São Paulo, nestas férias de verão. Prometendo mais do que
fantasias a um preço “camarada” de 100 reais por criança e 50 por adulto, esse
parque de diversões coloca empresas e produtos em contato direto com crianças,
com a clara intenção de criar consumidores fieis a marcas “do berço ao túmulo”,
como dizem os publicitários.
O parque vai
além do conceito de diversão propriamente dito e traz, na origem, a ideia de
aprendizagem pela brincadeira, orgulhosamente chamada de “edutenimento”. Criado
em Santa Fé, no México, no final da década de 1990, e inicialmente conhecido
como cidade das crianças, o Kidzania é hoje uma marca global presente em mais
de 15 cidades do globo, contabilizando um número superior a 10 milhões de
visitas. Nessa inocente brincadeira de faz de conta o mercado internacional
percebeu, desde 2006, uma maneira lucrativa de envolver crianças e torná-las
leais a marcas, que ali se espalham de forma nada comedida.
Em recente
depoimento à The New Yorker, o mexicano Xavier López Ancona, criador
do empreendimento, diz explicitamente que o parque, em formato de cidade, é uma
potente plataforma para se criar lealdade às marcas nessa sociedade de consumo.
A ideia original vendida nesse espaço é ser um parque educacional indoor que
oferece, às crianças e seus pais, um ambiente supostamente seguro que permite à
garotada exercitar comportamentos adultos da vida urbana – de forma autônoma e independente.
Tudo isso, segundo seus criadores, fazendo o que há de mais divertido e
importante na natureza infantil – que é brincar.
Sabe-se, porém,
que o brincar, como uma experiência singular de linguagem da criança, é uma
potente forma de socialização, exercício de cidadania, elaboração de conflitos,
além de um exercício de comportamento futuro – mas somente quando a criança é
autora de suas brincadeiras e escolhe onde, quando, com quem e como irá
brincar. Nada contra brincadeiras dirigidas, em especial quando acontecem num
curto espaço de tempo e os pais decidiram. Mas, quando as brincadeiras são
mediadas por marcas, sem autorização, temos um problema. No Kidzania as
crianças brincam de piloto, jornalista ou engenheiro em trocas sociais e
afetivas mediadas pelo consumo e troca monetária. A ideia de ingresso no parque
é “pegue seu dinheiro, faça mais dinheiro e gaste como desejar”.
Visualmente, o
espaço é uma cidade construída à escala das crianças (sempre dentro ou próximo
de shopping centers), com prédios, ruas pavimentadas, veículos e até uma
linguagem e economia próprias. Porém, o mais impressionante ali não é a
verossimilhança com as cidades, mas a integração do mundo real através das
marcas expostas, que patrocinam as empresas da cidade e suas atividades.
O discurso
falacioso é de que a autenticidade melhora a experiência, e que as crianças
aprendem de forma interativa com as melhores pessoas que lhes podem ensinar
sobre poupança e investimento – um banco, por exemplo. Além das marcas
multinacionais ou nacionais, há atividades financiadas pelo governo, inclusive,
em forma de propaganda de serviços na intenção de desenvolver a
responsabilidade cívica dos pequenos ou até mesmo prepará-los para um mundo
melhor. Encontramos ali, além de bancos e redes de fastfood, agências de
correios, hospital ou até mesmo uma unidade da Unicef.
A relação das
crianças com as cidades deveria ser, sem dúvida, enaltecida e privilegiada na
contemporaneidade, principalmente pelas famílias e escolas, pois “a rua é uma
aula, uma lousa”, como bem observou o professor espanhol Jaume Martinéz Bonafé.
Um lugar onde se escrevem e se exercitam valores, saberes e histórias a partir
das relações que ali se estabelecem. As cidades poderiam inclusive, diz ele,
ser adotadas como currículo escolar – com situações que produzem conhecimento
sobre o mundo. Portanto, em vez de privilegiarmos a construção ou até mesmo
passeios em espaços privados para as crianças exercitarem sua autonomia e
independência, faz-se urgente um olhar mais cuidadoso para as cidades e espaços
públicos para que esses, sim, sejam mais amigos das crianças.
Somente nas
cidades reais, com suas contradições pulsantes, é que somos capazes de nos
afetar, nos relacionar e assim transformar realidades. É somente a partir da
vivência plena de uma vida na pólis que somos capazes de exercitar nossa
cidadania e entender completamente o significado de comunidade, cuidado, troca
e brincadeira. Esse tipo de experiência não pode acontecer em cidades
planejadas à escala das crianças com a intenção, clara, de cooptar pequenos
consumidores e fidelizá-los às marcas.
Faz-se urgente,
então, devolver as crianças às ruas e as ruas a elas, além de deslocarmos a
aprendizagem para fora de espaços privados e das instituições de ensino, como
bem postulou Bonafé. Faço aqui uma convocação a urbanistas, engenheiros,
prefeitos, secretários, comunicadores, a toda a sociedade civil, para refletir
não somente sobre esse parque de diversões e o que ele de fato vende, mas
também sobre as mensagens que as cidades reais passam para as crianças desde a
mais tenra idade. Assim como Chico Buarque, na letra de A Cidade Ideal,
deveríamos todos cantar por cidades mais humanas e sustentáveis.
Reproduzido de Outras
Palavras
25 fev 2015
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