quinta-feira, 26 de fevereiro de 2015

Um parque de "domesticação infantil"


Kidzania, cidade nada ideal para crianças

Lais Fontenelle Pereira

Chega ao Brasil parque de diversões global que, em nome de “aprendizagem”, sugere limitar vida à lógica das empresas e marcas corporativas

“Deve ter alamedas verdes
A cidade dos meus amores
E, quem dera, os moradores
E o prefeito e os varredores
E os pintores e os vendedores
As senhoras e os senhores
E os guardas e os inspetores
Fossem somente crianças”

“A cidade ideal”, de Chico Buarque

Um empreendimento global para crianças entre 4 e 14 anos invadiu o subsolo do Shopping Eldorado, em São Paulo, nestas férias de verão. Prometendo mais do que fantasias a um preço “camarada” de 100 reais por criança e 50 por adulto, esse parque de diversões coloca empresas e produtos em contato direto com crianças, com a clara intenção de criar consumidores fieis a marcas “do berço ao túmulo”, como dizem os publicitários.

O parque vai além do conceito de diversão propriamente dito e traz, na origem, a ideia de aprendizagem pela brincadeira, orgulhosamente chamada de “edutenimento”. Criado em Santa Fé, no México, no final da década de 1990, e inicialmente conhecido como cidade das crianças, o Kidzania é hoje uma marca global presente em mais de 15 cidades do globo, contabilizando um número superior a 10 milhões de visitas. Nessa inocente brincadeira de faz de conta o mercado internacional percebeu, desde 2006, uma maneira lucrativa de envolver crianças e torná-las leais a marcas, que ali se espalham de forma nada comedida.

Em recente depoimento à The New Yorker, o mexicano Xavier López Ancona, criador do empreendimento, diz explicitamente que o parque, em formato de cidade, é uma potente plataforma para se criar lealdade às marcas nessa sociedade de consumo. A ideia original vendida nesse espaço é ser um parque educacional indoor que oferece, às crianças e seus pais, um ambiente supostamente seguro que permite à garotada exercitar comportamentos adultos da vida urbana – de forma autônoma e independente. Tudo isso, segundo seus criadores, fazendo o que há de mais divertido e importante na natureza infantil – que é brincar.

Sabe-se, porém, que o brincar, como uma experiência singular de linguagem da criança, é uma potente forma de socialização, exercício de cidadania, elaboração de conflitos, além de um exercício de comportamento futuro – mas somente quando a criança é autora de suas brincadeiras e escolhe onde, quando, com quem e como irá brincar. Nada contra brincadeiras dirigidas, em especial quando acontecem num curto espaço de tempo e os pais decidiram. Mas, quando as brincadeiras são mediadas por marcas, sem autorização, temos um problema. No Kidzania as crianças brincam de piloto, jornalista ou engenheiro em trocas sociais e afetivas mediadas pelo consumo e troca monetária. A ideia de ingresso no parque é “pegue seu dinheiro, faça mais dinheiro e gaste como desejar”.

Visualmente, o espaço é uma cidade construída à escala das crianças (sempre dentro ou próximo de shopping centers), com prédios, ruas pavimentadas, veículos e até uma linguagem e economia próprias. Porém, o mais impressionante ali não é a verossimilhança com as cidades, mas a integração do mundo real através das marcas expostas, que patrocinam as empresas da cidade e suas atividades.

O discurso falacioso é de que a autenticidade melhora a experiência, e que as crianças aprendem de forma interativa com as melhores pessoas que lhes podem ensinar sobre poupança e investimento – um banco, por exemplo. Além das marcas multinacionais ou nacionais, há atividades financiadas pelo governo, inclusive, em forma de propaganda de serviços na intenção de desenvolver a responsabilidade cívica dos pequenos ou até mesmo prepará-los para um mundo melhor. Encontramos ali, além de bancos e redes de fastfood, agências de correios, hospital ou até mesmo uma unidade da Unicef.

A relação das crianças com as cidades deveria ser, sem dúvida, enaltecida e privilegiada na contemporaneidade, principalmente pelas famílias e escolas, pois “a rua é uma aula, uma lousa”, como bem observou o professor espanhol Jaume Martinéz Bonafé. Um lugar onde se escrevem e se exercitam valores, saberes e histórias a partir das relações que ali se estabelecem. As cidades poderiam inclusive, diz ele, ser adotadas como currículo escolar – com situações que produzem conhecimento sobre o mundo. Portanto, em vez de privilegiarmos a construção ou até mesmo passeios em espaços privados para as crianças exercitarem sua autonomia e independência, faz-se urgente um olhar mais cuidadoso para as cidades e espaços públicos para que esses, sim, sejam mais amigos das crianças.

Somente nas cidades reais, com suas contradições pulsantes, é que somos capazes de nos afetar, nos relacionar e assim transformar realidades. É somente a partir da vivência plena de uma vida na pólis que somos capazes de exercitar nossa cidadania e entender completamente o significado de comunidade, cuidado, troca e brincadeira. Esse tipo de experiência não pode acontecer em cidades planejadas à escala das crianças com a intenção, clara, de cooptar pequenos consumidores e fidelizá-los às marcas.

Faz-se urgente, então, devolver as crianças às ruas e as ruas a elas, além de deslocarmos a aprendizagem para fora de espaços privados e das instituições de ensino, como bem postulou Bonafé. Faço aqui uma convocação a urbanistas, engenheiros, prefeitos, secretários, comunicadores, a toda a sociedade civil, para refletir não somente sobre esse parque de diversões e o que ele de fato vende, mas também sobre as mensagens que as cidades reais passam para as crianças desde a mais tenra idade. Assim como Chico Buarque, na letra de A Cidade Ideal, deveríamos todos cantar por cidades mais humanas e sustentáveis.

Reproduzido de Outras Palavras
25 fev 2015

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