Por que gosto
de crianças.
Por Juliana
Doretto
Coluna Ruth de
Aquino
Época
Esqueça essa
história de que elas são puras, angelicais e ingênuas. O ser humano não é
assim; e elas não são alienígenas. Também não quer dizer que perto delas nos
sentimos mais jovens. Balela: elas têm uma energia que nos faz lembrar como já
tivemos mais fôlego. Elas são engraçadas o tempo inteiro? Ao contrário. As
menores não se constrangem em mostrar a tristeza e, como num drama televisivo
mexicano, aprofundam a dor enquanto podem.
Eu gosto de
crianças porque elas são um desafio. Pouco treinadas na arte das regras
sociais, subvertem os códigos das respostas esperadas, dos comportamentos
aceitáveis, do contrato de boas maneiras. Eu não quero dizer que adoro crianças
birrentas e mimadas. Aliás, é comum ouvirmos hoje que os “miúdos”, como se diz
cá em Portugal, estão cada vez mais terríveis. Mas não há nada de errado ou
diferente com os meninos e meninas de hoje. O que parece ter mudado é o
crescimento de uma dificuldade profunda dos pais em mostrar a seus filhos que a
vida cotidiana é formada também por tijolos de frustração, entremeados por
incompletude em massa. O processo de educar, no sentido doméstico do
termo, é mostrar que fazemos o possível, e conseguimos o que podemos.
A subversão a
que me refiro é a resposta malandra, a esperteza de se saber mais inteligente
do que seu interlocutor, mas esconder isso. Ou melhor: estar acostumado a
sempre ser subestimado, e dar a volta, com brilhantismo, nessas situações. Eu,
como pesquisadora e como jornalista, entrevisto meninos e meninas há uns bons
anos. Já cansei de contar em quantas situações me senti uma estúpida, depois da
argumentação brilhante da criança à minha questão – que eu achava muito bem
articulada, até o seu desmonte total.
Não comece,
caro leitor, com o discurso de que são as tecnologias que as fazem mais
brilhantes do que nós éramos quando crianças. Você e eu já não nos lembramos
muito bem das situações vividas na nossa infância. E, pelo que eu saiba, todo
pai e mãe babões dizem ter filhos superdotados até que o contrário seja
mostrado. E isso desde muito antes do telefone de disco.
Além disso, em
minha pesquisa de doutoramento, entrevisto crianças com diferentes graus de uso
das tecnologias. E não houve, nesse ponto em questão, nenhuma diferença
berrante. A criança é esperta porque está aprendendo a viver num mundo onde
poucos acham que ela tenha algo importante a dizer: e isso se refere sobretudo
ao lugar que lhes é atribuído por excelência, a escola. Que o digam os
bravos professores que lutam contra essa ditadura do silêncio infantil na sala
de aula.
Vamos a
exemplos, para clarificar meu ponto. Dou um livro a um menino e pergunto se ele
gostou: “Não sei, ainda não li”. Pergunto a outro se ele é amigo de todas as
pessoas que ele tem no Facebook: “É claro que não. Desde quando amigo do Facebook
é amigo de verdade?”. Pergunto à menina se o celular dela já tocou no meio da
aula: “Já, foi sem querer, mas eu tento cumprir as regras. Já minha professora
atende sempre...” E, no meio da entrevista, a garota disse que o papo estava
muito chato, e resolve parar a conversa para tocar violão.
Já o adulto
resiste bravamente à entrevista moribunda, e responde a todas as questões do
entrevistador, mesmo com ar enfadonho. Afinal, é preciso ser educado. Falar mal
de outra pessoa numa conversa com um jornalista? É preciso pensar bem nas
consequências do ato. Mostrar que a pergunta do investigador foi estúpida?
Melhor não ser rude, ainda que a expressão facial do entrevistado não esconda
(por mais que ele queira) sua opinião.
Por isso, para
se relacionar bem com crianças que não são nossas filhas ou alunas (ou seja,
com quem não temos muita convivência) é preciso, em primeiro lugar, ter
respeito. Porque dali não virá o tipo de comportamento a que estamos
acostumados. Dali virá uma esperteza refinada e uma sinceridade ponderada: elas
já sabem que não podem contar tudo, mas a forma como escolhem o que dizem não
está no nosso catálogo social. Faz parte da maneira como elas descobrem o
mundo, dos códigos que já absorveram ou não.
Por isso eu
gosto de crianças. Porque elas são tão mais bem-humoradas do que os adultos.
Elas tiram sarro na nossa cara, e fingem que não têm consciência do que estão a
fazer. Com as bobagens que andamos ouvindo em época pós-eleitoral, seria bom
aprender com a brejeirice das crianças.
Juliana
Doretto . Paulista, jornalista e faz doutorado em Ciências da Comunicação na
Universidade Nova de Lisboa
Reproduzido
de Época
09 nov 2014
Conheça
a página “O Jornalzinho” (Diário de uma pesquisa de jornalismo
infantil) de Juliana Doretto, e o perfil da jornalista/pesquisadora, clicando aqui. Mais informações sobre seu
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papel", clicando aqui.
Comentário de Filosomídia:
Gostei muito de
sua crônica e das cutucadas que nos dá para refletirmos a respeito de como nos relacionamos
com as crianças - filhas e mesmo as desconhecidas - na vida, em casa, na escola
e na pesquisa nesses dias atuais. Nossa "desconcertância" em frente a
elas coloca esse desafio de apurarmos nossas percepções e superarmos limites
que colocamos nessa relação eventualmente marcada por preconceitos, presunção
na "vontade de dominação" delas e, decerto mal humor.
Lembrei de
Jorge Larossa em "O enigma da infância" no "Pedagogia
Profana" e algumas citações bem provocativas dele, por exemplo, Peter
Handke: "nada daquilo que está, constantemente, citando a infância é
verdade; só é aquilo que, reencontrando-a, a cita". Você, Juliana Doretto,
citou e mandou bem. Obrigado e, vamos que vamos nos desconcertando,
des-cobrindo essa criançada e nos des-cobrindo com elas em meio a esse mundo,
digamos, tão complicado, que nós insistimos em viver...
Bem ver, bem ouvir e bem falar com as crianças é difícil, é fácil...
Bem ver, bem ouvir e bem falar com as crianças é difícil, é fácil...
Paqonawta
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