Crime de Realengo: o sutiã lilás na tromba do elefante verde e amarelo
Maria Cristina Schefer [1]
Amanda Motta Angelo Castro [2]
Blasius Silvano Debald [3]
RESUMO: Este artigo, escrito a seis mãos plugadas à rede, examina, do ponto de vista dos estudos culturais: linguagem e gênero, o assassinato de 12 adolescentes brasileiros. Esse crime ocorreu numa única ação, dentro de uma escola, na periferia do Rio de Janeiro, Cidade Maravilhosa, praticado por um ex-aluno, evento que inaugurou a presença do Brasil no cenário global das brutalidades gigantescas, aquelas fadadas à não-conclusão. Isso, dado as inúmeras variáveis que atravessam as tentativas de se desenhar um “elefante”, sem nunca ter visto ou sequer tateado o animal. O recorte aqui demarcado e o problema da imprecisão serão delineados na ciência técnica da dificuldade de se enxergar para além do aparente, bem como na verificação dos perigos inerentes à banalização de um crime mediante a disputa pela informação entre a mídia e os órgãos investigativos oficiais. Quando, ambos, passam a supor ou nomear fatos (terrorismo, esquizofrenismo) e “coisas” (crianças-terroristas), no calor da emoção, sem distanciamento e rigor, ignoram, respectivamente, outras possibilidades (crime de gênero-exclusão) (jovens-mulheres) e legitimam aquilo que o senso comum e o Ibope alimentam. Recorre-se, como tentativa de dirigir um olhar ampliado, principalmente, à arte cinematográfica e às lentes de aumento de Gus Van Sant [4] (2003), em seu documentário crítico sobre o “similar caso” de Columbine (EUA).
Palavras-chave: Linguagem. Mídia. Terrorismo. Gênero.
Introdução
A parábola budista Os cinco cegos e o elefante, que conta o desafio que um sábio propôs a cinco cegos, para que descrevessem o paquiderme apenas tateando parte do animal, trata-se de uma analogia (de origem popular) que aponta para a impossibilidade de compreensão de um todo, quando se atém a apenas uma parte. Tal conto serviu de inspiração para nomear o documentário de Gustav Van Sant, Elephant (2003) sobre o crime de Columbine (EUA). Ao utilizarem esse “Elephante” para construir o título deste artigo, sobre o crime de Realengo, os autores (por tabela) imprimiram-lhe a parábola citada. Isso sugere aos leitores estudos preliminares (via cinema e narrativa popular) para a “pesada” leitura que segue. De outro modo, os doutorandos buscaram, nesses mecanismos exploratórios, inspiração para refletir sobre outra questão crucial presente ao longo da história da humanidade: a narrativa de fatos em meio a “cegueiras contingenciais”. Especificamente, no caso do crime brasileiro, é possível verificar o velamento da violência praticada contra a mulher, chamando a atenção para o poder de autoridade social dos relatores, dos informantes, de certos excertos e silêncios textuais, que mudam não apenas a manchete de uma “ocorrência”, mas todo o tratamento dado à questão. Pobres, meninas pobres da “escola” brasileira.
Os fatos
Rio de Janeiro, 7 de abril de 2011. A data no quadro foi escrita. Aparentemente, nenhuma novidade na rotina da Escola Municipal Tasso de Oliveira, situada no bairro do Realengo (zona oeste). Iniciava-se, o que poderia ter sido, mais uma manhã de confraternizações e estudos. Poderia! Não se sabe exatamente, mais ou menos, às 8h30min adentrou, em uma das salas do segundo andar, um suposto palestrante. Tinha um jeito familiar (disseram) e carregava uma bolsa que parecia pesada. Ou ele era pesado? O fato é que abriu a “tromba” sobre a mesa da professora (que, instintivamente, aguardou pela surpresa próxima da porta); sacou duas armas e começou o que, segundo relatos, pareceu inicialmente uma brincadeira. Uma sequência de mais de cem disparos, nessa e em outra sala, (com pausa para recarregar os revólveres de calibres 38 e 32), ausentou do caderno de chamada, para sempre, 12 adolescentes, dentre eles, dez do gênero feminino. E, desse modo, não foram alvos aleatórios, pois houve uma pré-seleção por parte do agressor; os rapazes foram poupados, bem como as duas professoras. Fato, que foi verificado na perícia, na materialidade do crime, nos depoimentos, pois, segundo os estudantes ainda presentes, o meliante centrou sua fúria na cabeça dasmeninas. De gaiato ou por identificação, pois memória de elefante é grande, morreram: Igor Moraes da Silva, 13 anos, e Rafael Pereira da Silva, 14 anos. O primeiro sonhava ser jogador de futebol; o segundo, amante de jogos virtuais, estava encaminhando documentação para trabalhar no programa Menor Aprendiz. [5] Algo nesses dois ratinhos (machos) incomodou o assassino.
Já as escolhidas para morrer foram: Mariana Rocha de Souza, 12 anos, estudiosa, jogadora de handebol e de queimada [6] na escola, fã do Restart [7] e de Luan Santana [8]; Ana Carolina Pacheco da Silva, 13 anos, somente reconhecida pela família um dia depois do incidente;Bianca Rocha Tavares, 13 anos, gostava de crianças e sonhava ser pediatra; Géssica Guedes Pereira, 15 anos, jogadora de vôlei na escola, gostava de dançar funk; Larissa dos Santos Atanázio, 13 anos. Na foto fornecida à imprensa, aparece posando para modelo; Laryssa Silva Martins, 13 anos, sonhava com a carreira militar: “Ela queria entrar na Marinha”, declarou um familiar; Milena dos Santos Nascimento, 14 anos, sonhava ser modelo e entrar para a faculdade e, por último, Samira Pires Ribeiro, 13 anos, frequentava a escola de Realengo a menos de um mês. Teriam os pais dessa moça dito, à porta da escola: “Aqui vais encontrar o mundo!” [9] (POMPÉIA, 1996, p. 1). Visto que os problemas sociais de um modo ou de outro acabam se refletindo no comportamento dos estudantes, nas práticas escolares, por mais altos que sejam os muros que uma escola possua, eles são ineficazes no que diz respeito a barrar a violência e outras inferências da sociedade.
Como lido, os mortos tinham sonhos situados e datados, de jovens ordinários, [10] periféricos, crentes nas possibilidades de emersão social futura. Na convergência desses desejos, agora imersos, tem-se a identidade dos estudantes.
Contudo, cabe asseverar que, discursivamente, a adolescência lhes foi negada pela mídia, pela sociedade, pois, ao contrário do que delimita o Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei Federal 8.069/1990), como faixa etária da infância:
Art. 2º. Considera-se criança, para os efeitos desta Lei, a pessoa até doze anos de idade incompletos, e adolescente aquela entre doze e dezoito anos de idade,
Os narradores da tragédia optaram por designar os mortos como crianças, infantes (não falantes). Já, objetivamente, os sobreviventes viraram informantes; doutro modo, os noticiantesnegligenciaram o ECA, no que diz respeito ao uso da imagem de pessoas na faixa etária entre zero e 18 anos: “Art.17. O direito ao respeito consiste na inviolabilidade da integridade física, psíquica e moral da criança e do adolescente, abrangendo a preservação da imagem, da identidade, da autonomia, dos valores, idéias, crenças, dos espaços e dos objetos pessoais.”
Nesse aspecto, é bom “videolembrar” que uma das “crianças”, um menino, agonizou por cerca de 10 minutos. E, ao que pareceu o seu tamanho (juvenil), não comoveu nem policiais nem outros civis que circularam seu corpo (“sem dó”) após a morte do invasor. Ele não foi salvo,salvou-se, convalesceu por dias numa Unidade de Terapia Intensiva; pouco se ouviu a respeito de sua recuperação. E, talvez, esse jovem seja a única vítima capaz de descrever, não o motivo do crime, mas a dimensão do terror social lá vivenciado. Sofreu ao mesmo tempo diversos ataques: físico, de identidade, de insignificância, de desrespeito.
Paralelamente às informações materiais que, quase em tempo real, foram sendo divulgadas na mídia, as suposições vieram à tona. Instalou-se um “eurekismo” por parte dos jornalistas, “auxiliados” por técnicos das mais diversas áreas, que aproveitaram “as deixas” para palpitarem em rede nacional. Um crime globalizado! Uma notícia dantesca!
Leia o texto completo no Blog Maria Docente, clicando aqui.
Reproduzido de Blog Maria Docente
06 jul 2012
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"Escola de segurança máxima? - Para educador, a tragédia de Realengo pode reforçar estilo bunker que já entrincheira a sociedade", por Christian Carvalho Cruz . Aliás/Estadão Online (09/02/11) clicando aqui.
"Excesso de violência nas TVs abertas pode causar problemas às crianças", por Priscilla Mazenotti (Repórter da Agência Brasil - 08/12/11) clicando aqui.
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