Alô, alô, STF, o povo brasileiro chamando!
“A família, as pessoas responsáveis pelos menores, têm um ótimo mecanismo de controle: desligue a televisão, desligue o programa. O Estado não pode ficar tutelando
as pessoas, elas não podem trocar sua liberdade em troca de uma proteção que elas nem sabem o que é.”
Cármen Lúcia Antunes Rocha - ministra do STF - 01/12/2011
“Os noticiários que acompanho regularmente, no fim da noite, são verdadeiros tranquilizantes para mim. Vejo tanta notícia desagradável sobre a Irlanda, o Vietnã, os índios americanos, e no que respeita ao Brasil está tudo em paz.”
Emílio Garrastazu Médici - presidente do Brasil - FSP 22/3/1973
Não fossem trágicas, as declarações acima seriam meramente cínicas e poderiam ser jogadas no lixo da história. Todavia, a indiferença com o sofrimento alheio embutido nas mesmas, o caráter irônico, quase sarcástico dos subtextos que trazem e, em especial, o status dos dignitários que as proferem faz com que tais manifestações não possam passar em branco. A segunda fala é por demais conhecida. Cabe ao mais sanguinário ditador da história brasileira, que a cometeu enquanto os porões do regime militar pululavam de seres torturados, famílias se desesperavam com o sumiço de seus entes e o grosso da população se divertia com as transmissões televisivas de jogos de futebol e novelas em altíssimo padrão de qualidade, completamente alheias à chaga que nos corroía para sempre.
A primeira declaração foi proferida recentemente por uma mulher que conseguiu se destacar da massa de 97 milhões de brasileiras e ascender à mais alta corte judiciária no Brasil, o Supremo Tribunal Federal. Não é pouco o feito da ministra Cármen Lúcia, foi a segunda mulher nomeada para o Supremo e sua indicação foi festejada e perscrutada com grandes expectativas.
Logo após sua posse, a jornalista Ligia Martins de Almeida escrevia na edição 387 do sítio Observatório da Imprensa: “Em resumo, o que as leitoras gostariam de saber é que diferença faz ter mulheres tomando decisões sobre as leis que podem – ou não – beneficiar metade da população brasileira.
Elas podem, com um parecer, mudar questões importantes para as mulheres como aborto, pensão alimentícia, guarda dos filhos, reconhecimento de paternidade, violência doméstica?”.
Hoje, no Brasil, as mulheres representam 40% da população economicamente ativa e são responsáveis por mais de 21 milhões de famílias - o que representa 35% dos lares do país. Elas se dividem entre o trabalho e os cuidados com a casa, ganham menos e trabalham mais. O resultado são jornadas de trabalho de impressionantes 66,8 horas por semana, em média, segundo o IPEA – Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada.
Mas a realidade é mais perturba dora ainda, já que todo este esforço é remunerado em pouco mais da metade do salário dos homens que fazem o mesmo trabalho. E sobra para elas, geralmente, os empregos de menor qualificação que se caracterizam pela ausência de mobilidade e oportunidade pessoal de crescimento. Mas isso é só o mundo do trabalho. É óbvio que estas chefes de família, com bons estudos, poderiam ascender em suas carreiras, chegar aos centros de decisões, ter direito a voz na formulação de políticas que afetam suas vidas e da sociedade como um todo. Mas isso segue sendo privilégio para poucas. A grande maioria das mulheres em idade produtiva e reprodutiva tem mesmo que “ralar”. Dois terços da população adulta analfabeta é de mulheres. É claro que elas não têm acesso à tecnologia da informação, não sabem sequer ligar um computador, não conseguem navegar na internet. Estão excluídas e marginalizadas no mundo em desenvolvimento. Aliás, o Ministério da Saúde estima que ocorram mais de 3.000 óbitos de gestantes e puérperas por ano, num persistente e incômodo sinal de subdesenvolvimento em nosso país. Mas o que é isso perto de cerca de 50 mil mulheres e meninas brasileiras escravizadas sexualmente e forçadas à prostituição, todas, invariavelmente, muito jovens e pobres?
O jornalista Gilberto Dimenstein, em recente artigo no jornal Folha de São Paulo, contabilizou 109 municípios no Pará com clara incidência de prostituição infantil. Também não se pode estranhar que há pouco, por ocasião do Dia Nacional de Combate à AIDS, as estatísticas tenham revelado o brutal aumento da doença entre meninas de 13 a 19 anos, num total de 66 mil casos constatados.
Enfim, tudo isso parece muito natural, se lembrarmos que 70% das brasileiras já sofreram algum tipo de agressão, sendo que quatro entre cinco delas, já foi vítima de estupro ou tentativa de estupro. Ou seja, os baixos níveis de participação feminina nas áreas social, educacional, econômica e política, ao lado das intangíveis discriminações e da concreta exploração da mulher trabalhadora, a situação de violência continuada de jovens e crianças do sexo feminino, de sua reduzida saúde e bem estar, nada disso é percebido pela ministra Cármem que, além de imputar a elas a obrigação de “desligar a televisão”, ainda troça de sua desgraça ao dizer que, por desconhecerem o direito que têm à proteção jurisdicional, devem viver e gozar a liberdade.
Que liberdade, ministra? Andasse um pouco, a ministra, pelos centros sociais de nosso país, confirmaria que realmente a TV não está na ordem da preocupação das mulheres. Elas estão por aí buscando encontrar solução, geralmente, para os problemas dos seus filhos. São mães que querem dar instrução a seus filhos e não conseguem sequer comprar material escolar. Ou vestuário. Ou não conseguem pagar um transporte que os leve para a escola; são mães que têm seus filhos doentes e não conseguem atendimento médico ou não têm dinheiro para comprar remédios. São mães que têm filhos com deficiências auditivas, visuais, motoras, mentais e não têm escola ou cuidadores para lhes ajudar no possível desenvolvimento, ou na mera sobrevivência dos mesmos. Mães de filhos desempregados, que vêm pedir auxílio para manter suas próprias famílias. Mães de mães solteiras. Mães que perderam tudo que tinham para pagar as dívidas contraídas pelos filhos. São mães de filhos alcoólatras, drogados, encarcerados, acreditando que pode haver meios para sua recuperação.
Não, ministra, para estas mulheres, TV não é problema, é solução. É a babá eletrônica que distrairá e manterá os demais filhos longe das ruas, dos perigos, da morte. Ao contrário do que a ministra Cármen Lúcia pensa, as mulheres brasileiras esperam que o Estado cumpra seu papel no oferecimento de infraestrutura social, particularmente para a economia do cuidado. E infraestrutura não é apenas creche e leite em pó, é também lei, legislação que resguarde seus direitos, como o Estatuto da Criança e do Adolescente, como aqueles contidos na Constituição Federal, Art. 220 - § 3º que diz que “compete à lei federal:
I – regular as diversões e espetáculos públicos, cabendo ao poder público informar sobre a natureza deles, as faixas de horários a que não se recomendem, locais e horários em que sua apresentação se mostre inadequada.
II – estabelecer os meios legais que garantam à pessoa e à família a possibilidade de se defenderem de programas ou programações de rádio e televisão que contrariem o disposto no art. 221, bem como da propaganda.”
Isso sim fundamenta a Classificação Indicativa que está sub judice no STF. Jogar sobre a família, e em especial sobre a mulher, a responsabilidade de controlar os abusos de um veículo de comunicação de massa formatado quase que exclusivamente para fomentar o mercado dos produtos de bens de consumo que patrocinam e financiam a programação, é ação não-responsiva.
O mais, como disse o pregador, é vaidade, vaidade de vaidades
Berenice Mendes
Da Executiva Nacional do FNDC
Reproduzido da Revista Mídia Com Democracia/FNDC na Edição 12/2011
Leia também “STF pode acabar com a Classificação Indicativa”, por Veridiana Dalla Vecchia, na págins 27 da Revista, clicando aqui.
Leia "Por que tanto medo em regular a radiodifusão" (16/12?2011), por Eugênio Bucci no Observatório do Direito à Comunicação clicando aqui.
Um comentário:
Existem mulheres, homens e elite. Não há gênero que resista às tentações da elite. Elite não tem sexo, mas não é nada parecida com os anjos...
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