A civilizada barbárie midiática e as mídias livres
A verdade e o inusitado
Observemos as palavras heterodoxia e ortodoxia: ambas têm em comum o radical doxa, que significa simplesmente opinião popular, estereótipo, convenção, verdade, motivo pelo qual heterodoxo é o contrário de ortodoxo, pois enquanto a primeira palavra indica aquilo que é o contrário da opinião popular, o diferente, o inusitado, o não esperado, a outra lógica; a segunda, por sua vez, reforça o sentido comum como fonte ou referência fundamental das condutas consideradas certas e normais; logo ortodoxas.
No entanto, observando mais de perto a palavra ortodoxia, começamos a achar que existe algo de podre no reino de Dinamarca, pois é um vocábulo formado por orto, que significa correto, e por doxa, que significa, como vimos, opinião comum, donde podemos concluir que ortodoxo constitui a opinião comum mais correta que as demais supostas opiniões comuns.
Existe, pois, na palavra ortodoxo, uma pretensão autoritária de algo ou alguém que se julga de posse de uma verdade, que é mais verdade que a verdade comum, a do senso comum, pois se apresenta como a verdade correta ou simplesmente como a verdade que todos devem acatar, a pretexto de seguir o caminho considerado comumente correto.
Para escarafunchar mais agulha no paiol, é possível notar ainda que ortodoxia não quer apenas significar uma verdade mais verdadeira que as demais, posto que pretende constituir-se também como uma verdade do e para o senso comum, de modo que quer ser ao mesmo tempo correta, unidimensional e, por isso mesmo, aquilo que deve ser aceito por todos, como verdade qualquer, e heterodoxa, e ao mesmo tempo única, logo ortodoxa.
A batalha pelo heterodoxo
A esse estranho fenômeno de uma verdade querer sempre ser mais verdadeira que outra e ao mesmo tempo banal, porque presente no comportamento da maioria, podemos chamar de paradoxo da doxa ou de paradoxo da verdade, o paradoxo de uma verdade arrogante, por querer ou pretender ser ao mesmo tempo a única verdade para todos, independente de diferenças econômicas, étnicas, de gênero, históricas, culturais.
O que distingue, por outro lado, as culturas de massa, como a nossa, das sociedades precedentes, é exatamente isto: a verdade continua sendo, de forma ortodoxa, controlada por uma elite ou casta, embora deva estar sob a posse de qualquer um. No mundo da sociedade do espetáculo, que é o nosso, a ortodoxia não é uma verdade cuja posse legítima é a de um grupo restrito, mas a da massa, da maioria, de qualquer um, razão pela qual é uma ortodoxia heterodoxa, por funcionar ou valer sempre conforme as circunstâncias e os interlocutores.
Ortodoxo, hoje, portanto, é a verdade, banal, estúpida, acessível, sob a posse de qualquer um, mas manietada por poucos. Eis porque tem poder, na sociedade contemporânea, quem consegue transformar a verdade de seus interesses em vulgar verdade ortodoxa ou, para dizer de outro modo, em vulgar verdade mais correta que as outras verdades vulgares, como se uma vulgaridade fosse melhor que a outra.
(...) O que chamamos de mídia planetária, hoje oligopolizada, nada mais é que o resultado comunicacional-tecnológico do alinhamento ortodoxo da informação aos donos do mundo, aos aliados, tendo em vista a mesma estratégia que subjaz instituições como o FMI, Banco Mundial, ONU: falar em nome da igualdade, da liberdade e da fraternidade para eliminá-las e evitá-las a todo custo – claro, custo para a liberdade, para a igualdade e para a fraternidade, não para os aliados imperiais, evidentemente da partilha ortodoxa do mundo.
Luís Eustáquio Soares
07/06/2011 na edição 645
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